No dia 19 de novembro, eu entrevistei o meu amigo, meu professor e historiador Amador Marcondes, numa livestream no CCMUSICAL, em homenagem ao dia Consciência Negra, feriado que lembra a morte de Zumbi dos Palmares (para assistir a live clique aqui). Nós, o professor e eu, não contávamos que, neste mesmo momento, em Porto Alegre, estaria acontecendo uma cena de horror com um negro. No fim, quando a tal cena foi divulgada e repercutida pelos jornais e redes sociais, não tive dúvida de que a barbárie era fruto do chamado “empoderamento” do racismo, um termo que o meu professor usou durante a live.
Mas como assim “empoderamento” do racismo? Não é exagero esta expressão, uma vez que o que se fala é justamente o contrário, o empoderamento feminino, o empoderamento negro e etc?
Na verdade, o que se vê desde a eleição de 2018, o discurso de ódio ganhou um porta-voz importante: o presidente eleito Jair Bolsonaro. Desde 2018, as bandeiras da anticorrupção, da moral política e da preservação da família tradicional, sobrepujou os outros debates tão importantes para o país. Debates estes que expunham a principal mazela do Brasil: a gritante desigualdade social.
Estes debates sobre os rumos da educação, da saúde e do meio-ambiente foram politizados e ideologizados, os fatos foram constantemente negados (como o efeito letal do corona vírus e as queimadas de nossas florestas), as constantes provocações à imprensa as instituições democráticas e as nomeações de secretários e ministros aversos ao bom senso forjaram uma narrativa agradável aos ouvidos de simpatizantes mais conservadores, fortalecendo, assim, o discurso de que tudo é lindo e maravilhoso em nosso país, apesar dos apesares. Vamos analisar estes discursos.
O vice-presidente Hamilton Mourão quando perguntado, recentemente, sobre se há racismo no Brasil, ele respondeu o seguinte (clique aqui):
Pra mim aqui não existe racismo, isso é uma coisa que querem importar. […] Aqui o que você pode pegar e dizer é o seguinte: existe desigualdade, isso é uma coisa que existe no nosso país!
A “desigualdade” aqui é simplista e rasa, que não abarca todas as implicações históricas, políticas e culturais do termo. Para o governo, desigualdade é apenas quem é rico e quem é pobre, simples assim.
Desigualdade social, na verdade, implica, entre tantas outras coisas, na qualidade da escola que as diferentes camadas sociais recebem. Quanto mais periférica a unidade escolar estiver situada, pior é a sua qualidade. Veja: se uma escola estiver em um bairro violento da cidade, poucos profissionais experientes se interessariam em lecionar ali, aqueles que topariam sofreriam com as faltas de recursos e desestímulos da direção e do próprio alunado, portanto permaneceriam pouco tempo na unidade, gerando assim muitas aulas vagas e rotatividade de professores, acarretando em descontinuidade do processo de ensino-aprendizagem e, por conseguinte, na má qualidade da educação. Este é só um aspecto quando se fala em qualidade da educação em bairros periféricos.
Diferentemente, aqueles que tem condições financeiras e queiram pagar pelo serviço educacional têm uma escola de mais qualidade, uma escola que está, a priori, mais voltada para as questões pedagógicas do que sociais. Escola esta que prepara seus alunos para ocuparem as vagas das melhores universidades do país e os mais altos postos do mercado de trabalho.
Desigualdade social implica, entre tantas outras coisas, na qualidade da saúde. Enquanto as UBS vivem lotadas, com filas quilométricas à espera de uma consulta de uma especialidade médica que muitas vezes nem médico tem (porque este prefere atender em seu consultório particular em detrimento de sua matrícula do setor público), os grandes hospitais privados têm um leque grande de especialidade, equipamentos dos mais modernos e atendimentos humanizados que só o dinheiro consegue comprar.
A desigualdade é constatável ao ver que o pobre é quem frequenta a escola periférica e a UBS que não tem médico. Este pobre é o negro. E o rico que frequenta uma escola livre de conflitos sociais, preocupada somente com ingresso do aluno nos mais altos postos da sociedade (claro, pois isto é marketing para atrair mais ricos para pagar esta educação) é de cor branca. Desigualdade não é, portanto, quem é rico ou quem é pobre, mas também quem tem escola boa e bom sistema de saúde e quem não tem. Desigualdade é quem é branco e quem é negro.
O presidente Jair Bolsonaro é mais “festivo” nas suas declarações sobre o povo brasileiro. Veja o que ele disse na reunião da cúpula do G20 (clique aqui):
Em face da tentativa de importar ao nosso território tensões alheias à nossa História. O Brasil tem uma cultura diversa, única entre as nações, somos um povo miscigenado. Brancos, negros e índios edificaram o corpo e o espírito de um povo rico e maravilhoso. Foi a essência desse povo que conquistou a simpatia do mundo.
Bolsonaro aqui reproduziu um discurso iniciado no Estado Novo (1937-1946) e fortalecido nos anos de chumbo da ditadura militar (1964-1985): o discurso da “democracia racial”. Esta ideologia prega a convivência pacífica entre todas as raças, “a despeito das desigualdades motivadas pelo racismo no país e por estruturas racistas culturais, sociais e políticas que privilegiam brasileiros brancos”. (fonte: Wikipédia)
Como discurso de empoderamento, ambas as falas de Bolsonaro e Mourão NEGAM O RACISMO (apesar de Mourão admitir que há desigualdade) e ainda culpam de querer importar (sem dizer quem quer) dos EUA “tensões alheias à nossa História”. Mas alguns fatos históricos desmentem isto: após a Lei Áurea, Milhares e milhares de negros soltos das senzalas, sem perspectivas de moradia e nem emprego instalaram-se em morros que margeavam os centros urbanos, originando as primeiras favelas. O governo da época iniciou o processo de embranquecimento da nação brasileira, incentivando, assim, a imigração europeia, sobretudo a italiana. Mais tarde, na década de 1930, a obra “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre contribuiu na representação o Brasil como uma democracia racial, um lugar no qual não existiam ‘barreiras de cor'” (fonte: Por Dentro da África).
Ok, ok, mas se depois de tudo isto você ainda não está convencido?! Vamos fazer um teste: o que você pensaria ao ver um negro, tatuado, de chinelos, boné e camisa de time de futebol, vindo em sua direção, com um andar solto e displicente?
No mínimo suspeitaria da intenção do cara e logo ajeitaria sua bolsa protegendo-a entre os braços. Se realmente você pensou desta forma, sinto informar que o preconceito e o racismo já está instalado no seu ser.
Em suma, se a autoridade máxima da nação declarar a harmonia entre as raças, negando a existência o problema do racismo, comparando-o a realidade de um outro país e ainda minimizando-o como uma desigualdade pura e simples é sim empoderar o discurso de racismo, é sim legitimar o discurso de ódio, é sim incentivar que mais cenas de horror, como aquela de Porto Alegre, aconteçam com mais frequência.