Texto de Tonny Araújo*
O blues se tornou um dos fenômenos mais populares do século XX. É possível encontrá-lo sem muito esforço, por exemplo, nos sopros de Louis Armstrong, Duke Ellington, John Coltrane e Miles Davis; no ritmo balançante de Chuck Berry, Little Richard, Ray Charles e Otis Redding; nos fraseados do jovem Paul McCartney, Jimmy Hendrix, Keith Richards e Jimmy Page, ou mesmo vibrando na voz de Eric Clapton, Janis Joplin, B.B King, Mick Jagger e Phil Lynott. Esses são apenas alguns dos milhares de artistas populares famosos que vislumbraram no blues o alimento fundamental para as suas composições. Contudo, qual teria sido o fator, ou os fatores que elevaram este gênero musical de origem negra e rural a tamanha popularidade?
Um dos fatores seminais que proporcionou o nascimento do blues primitivo foram os famosos e polêmicos Espetáculos de Menestréis (Minstrels Show). Um modelo de apresentações que se tornaria muita famosa na virada do século XIX. Tanto que romperiam as barreiras dos teatros ganhando amplo espaço na televisão, a exemplo do popularíssimo The Black and White Minstrel Show produzido pela BBC de Londres, no ar entre 1958 e 1978. Foi possível ver a permanência dessa tradição popular no cinema americano, como no primeiro filme a sincronizar o som e a imagem intitulado The jazz singer de 1927, estrelado por Al Jolson, nome artístico do ator e cantor judaico Asa Yoelson. A canção jazzística Mammy cantada por Al Jolson trazia um “negro” melancólico, clamando – em um inglês propositalmente errôneo – por sua “mamãe”, como uma criança órfã. Essa atuação tem estrita relação com as origens e transformações dos espetáculos de menestréis.
Mas, antes de começar a falar a respeito desses eventos é importante destacar que a palavra “menestrel” nem sempre esteve associada a esse formato de performance, lembrado muitas vezes por seu conteúdo racista. O termo surgiu na Idade Média, provavelmente antes do século XI, e se referia a poetas que contavam seus poemas e cantavam histórias com aspectos reais ou fictícios para os nobres das cortes europeias. Tais artistas passaram a ter maior contato com as massas ao passo que foram sendo substituídos pelos trovadores, muito provavelmente pela origem aristocrática desses novos artistas. Fato é que essa diversificação levou o menestrel a ser uma figura errante e ter atividades fora da corte, em outras palavras, mais populares.
Esse sentido popular será retomado nos Estados Unidos no século XVII, com as primeiras atuações de artistas brancos pintados de preto. Os chamados “sambo” (caras-pretas) eram personagens populares criados para compor um grupo de atuações que envolvia personagens folclóricas e que apresentava uma figura estereotipada dos negros sulistas. Aliás, não foi gratuito que tal fenômeno tenha surgido mais especificamente nas regiões com maior histórico escravista e segregacionista.
Nesse sentido, tratavam-se de espetáculos cênicos de cunho popular que se tornaram nacionalmente famosos na primeira metade do século XIX. Apresentavam-se danças, músicas e quadros cômicos, geralmente envolvendo atores brancos pintados de preto – os black faces. Esses atores geralmente utilizavam geleia de petróleo ou rolhas de champanhe pulverizadas em suas maquiagens. Pode-se citar os nomes de Charles Mathews, Edwin Forrest, George Washington Dixon e Thomas Dartmouth Rice como exemplos dos primeiros menestréis brancos famosos. Este último fez um estrondoso sucesso representando o personagem Jim Crow. Canções como Jump, Jim Crow! e também Sich a Getting Up Stairs, que viria a ser um musical homônimo em 1830, são as mais representativas do período. Rice talvez tenha sido o mais notável menestrel do século XIX por adaptar típicas canções folclóricas inglesas para a linguagem dos caras-pretas.
Segundo o pesquisador William John Mahar, a inserção dos anedóticos caras-pretas representou, paradoxalmente, uma representação de todos os estereótipos racistas presentes no imaginário da sociedade branca norte-americana, de maneira que o público se interessava em “como as diferenças raciais e a escravização [nesses espetáculos] reforçavam as distinções entre brancos e negros norte-americanos” (MAHAR, 1999, p. 01) e que, porém, se tornaram em fins do século XIX difusores da cultura negra por todo o país. Ainda à luz de William Mahar: “o espetáculo de menestrel foi o primeiro ponto de intersecção entre a cultura afro-americana com uma riquíssima herança musical que incluía retenções africanas e uma enorme tradição estilística derivada dos ingleses e italianos que se misturou com os materiais folclóricos anglo-americanos. Há muitas evidências de que negros e brancos americanos compartilharam um bom negócio com muita música, humor, costumes sociais e crendices do que tem se compreendido em muitos estudos sobre os menestréis” (MAHAR, 1999, p. 04).
Longe de querer desconstruir o sentido pejorativo dentro dos espetáculos de menestréis e também de analisá-los de maneira simplista, é interessante, no entanto, perceber como o negro se apropriou desse mercado como porta de entrada para transmitir sua cultura, dificilmente expressada antes da Guerra Civil Americana (1861-1865). Sabe-se que a abolição da escravidão instituída após a sangrenta batalha entre os Confederados e a União remodelou as relações sociais nos Estados Unidos. Se por um lado, a região norte carregava a propaganda democrática e igualitária, o Sul, de origem escravocrata e rural, prosseguiu segregando negros e brancos mesmo com o fim da escravidão.
Billy Van, comediante e menestrel da companhia Wm.H.West’s Big Minstrel Jubilee
Entretanto, até que os abolicionistas e os negros lutassem para acabar com as apresentações, elas ainda renderiam bastante lucro para os seus patrocinadores e atores durante boa parte de fins do século XIX, passando pela primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo, no entanto, essas apresentações também possibilitaram o estabelecimento de uma primeira integração entre a cultura negra e branca. Como isso foi possível em uma região tão apegada ao modelo escravista? Não foi algo apenas permitido, mas conquistado pelos artistas negros, sem dúvidas. Nesse ambiente hostil e retrogrado, a cultura popular ascendeu como um dos principais meios de entretenimento das classes mais pobres. Em uma sociedade pós-colonial sem uma música nativa representativa era comum que os atos musicais fossem paródias das culturas italiana, francesa, inglesa e sobretudo afro-americana. Devido esse aspecto burlesco e de um conteúdo facilmente inteligível para as massas, os espetáculos quase que imediatamente fizeram turnês pela Grã-Bretanha em um momento no qual se faziam presentes os music halls, as comédias musicais, as pantominas e o teatro de revista.
No segundo capítulo do livro The Show Must Go On: Popular Song in Britain in the First World War (2016), intitulado A patchwork of genres, o pesquisador John Mullen mostra que, ao contrário dos Estados Unidos, não havia evidências na Grã-Bretanha de denúncias contra os espetáculos de menestréis e o racismo neles presente, até que finalmente este veio a declinar na segunda metade do século XX, dando lugar ao Vaudeville. Quanto à presença dos menestréis na Europa, foi exatamente no período de 1846 a 1850 que o grupo denominado Ethiopian Serenaders surgiu e fez sua principal turnê em Londres. Além do percussionista Gilbert Pell e do banjoísta Thomas Briggs, fazia parte da trupe o dançarino irlandês William Henry Lane, apelidado de Master Juba e único integrante negro.
O sucesso desses espetáculos tornou possível a abertura de vários salões de ópera, como o Buckley’s Chinese Hall, o Christy’s Mechanic Hall (criado pela companhia Christy’s Minstrels de Edwin Pearce Christy), e o African Grove, teatro localizado em Nova York e fundado em 1821 por negros que visavam igualmente inserir-se no mercado de entretenimento em uma tentativa de se legitimar, uma vez que havia um público branco que dava preferência à execução de músicas e performances de negros autênticos. Nesse período de mudanças na estética dos espetáculos de menestréis, por volta de 1870, foram adicionados também os cânticos religiosos (spirituals) compostos pelos negros cristãos, e instrumentos musicais como o banjo, até então associado aos músicos negros de blues.
É ainda por volta desta época que surgem as primeiras companhias a inserir mulheres em suas performances. A “mãe do blues”, a cantora Ma Rainey, por exemplo, excursionou juntamente com a companhia Rabbit Foot Minstrels pelos Estados Unidos em um momento no qual não apenas a musicalidade do negro estava em alta, mas também os circuitos de apresentações mais distantes, levando essa cultura para além das regiões Sul, Centro-sul e Nordeste do país. Vale ressaltar que o “pai do blues” William Christopher Handy também excursionou pelo país com a banda de menestréis Mahara no final do século XIX e logo gravaria um dos primeiros blues da história, Memphis Blues. Assim, de coadjuvantes a atores principais e apesar dos pesares, os negros se apropriariam e subverteriam os sentidos dos espetáculos de menestréis para difundir sua cultura.
Referências
MAHAR, William John. Behind the Burnt Cork Mask: Early Black Face, Minstrelsy and Antebellum American Popular Culture. University of Illinois Press. Urbana and Chicago, 1999.
MULLEN, John. The Show Must Go On – Popular Song in Britain in the First World War – Ashgate Popular and Folk Music Serie. Routledge, 2016.
*Tonny Araújo
Colaborador do Música e Sociedade. Mestrando no Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade (Mestrado Interdisciplinar – UFMA) onde elabora dissertação a respeito do jazz no Brasil nos anos 60. É autor do livro “O lugar do jazz na construção da música popular brasileira (1950-1956)”, graduado em História pela Universidade Estadual do Maranhão, baterista e escritor.